quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Desalis ~



O jovem anjo mirava profundamente os negros olhos do Abismo, com a plena certeza de que aquele ato fosse o mais lúcido de sua elucides e também a última certeza de seus decorrentes atos, que prostravam-no tão firmemente, diante de suas nulas expectativas para prosseguir com aquela fatídica encenação que era o viver. E então, ao enlaçar-­se cegamente com tão sombrios pensamentos, este ansiava pelo sentimento utópico de escapar de todo o seu redor, para quem sabe se houvesse a ele fim, este pudesse alcança-­lo e segui-lo em direção ao enigmático nada, que era para si a única coisa com que lhe restava comprometimento. Mas o conhecimento que o já não mais inocente não possuía dentre seu vasto saber, era que mais sonora do que as suas cristalinas lágrimas que ecoavam levemente de encontro ao solo, eram as rápidas e tépida batidas do pedroso coração do Abismo, que ao fita-­lo de seu impotente papel, que o fora posto em mãos sem consentimento algum, sofria como seu suposto coração, que assemelhava-se em gosto ao puro fel e que assim fazia com que tomasse consciência de que este realmente existia e pulsava dolorosamente. Mas infelizmente de toda esta dor Desalis, o belo e encantador anjo, jamais tomaria consciência.

Decidido sobre sua insana alternativa, que duvidosa jamais fora desde o principio, pois este não lhe permitia tais pensamentos naquele desdobrar-­se de fatos, o pequeno anjo segue a leves passos em direção à assustadora Fenda, logo retornando seu frágil corpo a imobilidade, como se houvesse desabrochado em si naquele breve momento, um ardente desejo de pairar sobre as estrelas e caminhar sobre os céus como este costumava fazer em suas vagas recordações, que pareciam se afastar mais de si a cada passo que prosseguia, e que de mesma forma caminhavam à si consoante uma imensa multidão em sua total desordem. Talvez fosse isto. A concretização do proferir dos sábios, da realização do clichê sobre o levante de lembranças que acompanhavam a um homem em seu último suspiro de vida. Em seu derradeiro e sôfrego folego. E ao que por si só indicava, aplicava-se de mesma forma a todos e a até mesmo a anjos. O desalado ser, permanecia a encarar a Fenda, que o retribuía com similar vaguidão a que o silêncio possuía, mesmo esta sabendo que este nada mais temia, pela sua falta de valor suficiente em si para prosseguir com a “farsa” que era para ele e para os de sua mesma origem, o auge de suas reles e simbólicas existências.

O Abismo que durante toda a sua milenar existência que ultrapassara até mesmo toda a criação da terra e do homem e que jamais sofrera ao fitar coisa alguma, passava a ofegar silenciosamente em companhia de seu morno desespero, que o cobria como alva lã, como em um torpor ou como a grande ânsia na qual a morte vem para com os que estão vivos e póstumos ao mesmo tempo. A peça encontrava-­se em cartaz. O teatro de portões abertos. E os scripts se mantinham a mesa para uma bela tragédia cênica, com seu majestoso e cego contracenar em meio ao forte tom das longas cortinas bordô.

A consciência do rochoso então o leva por alguns instantes ao encontro de sua sanidade, podendo assim relembrar claramente de como já vira essa cena repetir-se milhares de vezes. Moças e alguns escassos homens, de corações feridos e almas mortas, à procura da ilusória cura ou remedição que somente a perpétua paz no gélido solo ao final de si enganava-­os oferecer. Nos seus possíveis e respectivos “aléns de tudo” no final do íngreme ceder do Abismo.

Mas a questão que tornava salubre o cálice da verdade ali presente e que transformava o todo em um ato de esbelto desespero era o fato de ser um anjo, um ser do qual poucos seres terrenos, dentre destes os homens, jamais tomariam conhecimento durante seus reles piscar de olhos que limitavam a passagem de suas curtas vidas e que estes sempre lutavam arduamente para lhe tornarem o mais artificial possível, pois foram poucos aqueles que possuíram a sorte e a beleza, por assim dizer, de atrair para si a atenção destas encantadoras existências de longas madeixas e seus curvos cachos dourados. Alguns até se arriscavam a descer até a impura terra, para assim deixarem ser perseguidos pelos respectivos homens que obtinham seus puros corações. Mas aquele Anjo, que permanecia imóvel diante do curto caminho no qual o separava da negritude da noite, era apenas um sem brilho. Suas asas se encontravam naquele momento sujas pela infértil terra daquele morro, como se o impossibilita-­se de voar com seu escuro tom, pois o anjo fora lançado à terra de modo grosso e bruto ao guardar o Amor em seu colo. Lembrava-­se das antigas profecias e canções referentes aos Luminosos seres. Que eram cantadas pelos finos lábios dos que sussurravam. Diziam que quando um anjo que carregava consigo o sentimento humano da dor de um amor em seu frágil coração, encontraria como quebra de sua realidade: a morte. E que quem esta a presenciasse, tomaria para si uma ligeira visão do desgarrado caminho que o levara até o fim de sua misteriosa e encantadora existência.

E com seu último sorriso em direção ao alto e as estrelas, o anjo lançar-­se no assombroso tudo e enigmático nada por qual este tanto ansiava, sabendo assim que Ele, o arquiteto do universo, já não o salvaria daquilo por seus últimos fazeres. Mas antes deste tocar finalmente o chão. Enquanto a noite sorria ao poder abraça-­lo e o infértil solo gritava silenciosamente para receber com o maior impacto possível aquele desgarrado e esplêndido ser, que o privilegiaria a terra com uma bela e nova flor no local de sua morte. O Abismo pôde ver nas pequenas orbes azuis do anjo, que se encontravam um tanto serradas pelo atrito dos gélidos ventos, como em um fim de tarde nublado ao encontrar-se com o negro crepúsculo em seu último desfecho. Esta simplória Fenda, assistiu aos motivos das dores do anjo. Suas aflições. Suas angustias e o maldito “por quê?" de tudo aquilo.

Como a base de eufemismos este merecera ser evocado por seus atos inescrupulosos, que fizeram com que aquele encantador anjo que até esquecera como sorrir, recorresse ao assustador modo de encontrar a sedenta paz a si mesmo, após clamar desesperadamente por seu Criador, que havia o dito que nada poderia fazer. O abismo assistia claramente tudo o que o “humano” o havia dito, após saírem dos rosados e finos lábios do anjo as palavras: “Amo-­te” e quando em reação a este ato o resultado fora um tapa. Seguido da dor. Que se tornara profunda em seu âmago por nunca a tê-­la antes sentido e imensuravelmente angustiante por vir de quem mais este prezava. Ele então se recompora e ao perguntar "A razão daquilo?" Pois não podia ele entender os homens. Pois eram para si estranhos e irracionais. O garoto de cabelos negros como a noite e sobrancelhas franzidas á mercê de sua suposta indignação, o respondera: “Que era assim que a vida era, que mesmo o amando de reciproco modo, ele era um menino, antes mesmo de ser um anjo e que por tais motivos, dessa Imundice jamais provará” como quase o cuspira a face ao dizê-lo tais afirmações. Ele desta forma recusou seu amor, oferecido sem retribuições ou preços, apenas o amando e nada mais.

O Anjo então se agachou e pôs-­se a chorar frente ao humano, enquanto as azuladas hortênsias que o cercavam começavam a secar até alcançarem o fosco tom ocre, pois é forjado o brilho das flores e do universo da paz dos anjos, e aquele chorava em sua infinita amargura, enquanto o garoto a sua fronte ria, descontroladamente, a berrar aos ventos que: “Os Anjos também pecavam e que eram imundos como qualquer coisa na terra, pois ansiavam por carne humana. Carne de homens. Os convidando a dormir com estes e trair a Deus em tua crua face”. O celestial ser, enquanto escutava a aquele amontoado de palavras de sentidos dolorosos em sua essência e que por isso não pareciam possuir sentido algum, pôs-­se a tornar esta sua única alcunha, chorar pelo que partia da estridente voz de seu tão querido. Desalis, o anjo, pensava consigo mesmo: “Que não era aquilo que ele desejava. Ele o amava. Mesmo sem entender muito do que isso se tratava em sua essência, até mesmo decidira há tempos, dentre alguns de seus utópicos devaneios, que arriscaria a tudo e a todos. Que tentaria com aquele humano construir algo, juntos. Que pertenceria unicamente a ele, eternamente companheiros...” Pensava este, que sob seus pequenos conceitos, que o gênero não fosse de tamanha importância para si, mas ao que aparentava ao outro era de extrema. Pois se perguntava que sentido possuía o ódio em frente aos mornos sussurros que amor trás em seu canto?

Desalis então fita o humano. Fita­-o com seus nebulosos e carinhosos olhos. Fita a Marcus. Com suas maçãs úmidas e face um tanto sangria, resultante do anel que se encontrava a mão do garoto ao esbofetear-­lhe. Sim, este era o nome da criatura, que tinha os raivosos olhos do abismo fitos em si ao estender de toda aquela ilusão, mas os do efêmero carinho e ternura do anjo, que perpetuou-se durante toda sua existência e que se mantinham de mesmo modo presente até mesmo naquele amargo instante.

De repente tudo se dá fim, o anjo toca por fim o solo de modo cru e sem excitações, tornando-se inerte a olhos arregalados, como a triste cena do desfecho já descoberto por quem a assistia. Em sua face, a ferida do tapa que levara ainda encontrava-­se um tanto vermelha, enquanto o forte tom da margem de sangue crescia alvarmente em torno de si.

Mais tardar mas ainda naquele mesmo dia, logo após uma jovem menininha de fitas vermelhas no cabelo, encontrar o inerte corpo do anjo enquanto esta se aventurava entre os morros na companhia de um extenso rebanho de ovelhas, a notícia se espalhou pela pequena cidadela, até alcançar como uma brisa dos ventos o saber de Marcus, que ao tomar conhecimento do fato, fora como todos ali ver de quem se tratava a tragédia. Já não sendo ele o primeiro a chegar, pois o local encontrava-se amontoado das curiosas pessoas que sempre vivem a torcer pela desgraça dos que a rodeiam, para que tomassem destas como um reles diferencial de suas débeis rotina, transformando a dor e o sofrimento num motivo de risos e assunto por todo um longo tear no tempo.

O garoto então se agacha sobre o escuro solo, que encontrava-­se juntamente ao corpo tingida da forte cor púrpura e então limpando-­lhe a face do anjo com a ponta de sua camisa, que umedecera ele trêmulo com sua própria saliva, enquanto sentia em seu âmago o dolorido palpitar de arrependimento, pela imensa monstruosidade que percebera cometer.

Alguns instantes se manifestam e o menino levantasse a chorar de desgarrada forma. De modo a despertar assim, a curiosidade de todos os presentes naquele grande amontoado de sussurros. Este então mira o Seu Belo Anjo, como o clamara arduamente em seus pensamentos, em meio ao sentimento de vê­-lo ali tão inerte. Erguendo assim sua cabeça e fitando o luminoso céu, percebe que o alto abismo que ali sempre estivera já não mais existia. Este havia cedido abaixo, como todos ali suspeitavam mas não compreendiam o por quê.

Marcus então se levanta, sentindo como se seu corpo pesasse muito mais do que pudesse imaginar naquele momento, soltando em seguida de seus lábios trêmulos, pequenas palavras que remetiam somente a sí mesmo:

“E então o Anjo lançou­-se dentro do grande Abismo. E o abismo assim também o fizera, ao lançar-se na enorme dor que o luminoso ser guardava, mas não mais somente a si.”

E ao proferir com rouco tom tais palavras, que se tornaram as derradeiras do desfecho de sua curta vida. O garoto levantas­se a simplesmente caminhar. A procurar de sua fenda qualquer, que o destino colocaria cegamente sob seus sôfregos passos e onde seria esta para si o lugar de sua pobre e fútil remediação, que era o simples moldar que sobrara a sua paz de vidro, onde este perpetualizaria e assim esperaria por seu já não mais querido desalado.~




Notas do Autor:
Olá a todos! Este é um pequeno conto que escrevi já a um bom tempo mas estava eu afundado na dúvida se deveria ou não posta-­lo aqui, pois este fora fruto de uma péssima experiência que passei. Mas mesmo com todos esses altos e baixos do passado cá esta ele, minha “nova" postagem. Espero que tenha “agradado a todos como agradou a mim” falar do triste fim do meigo Desalis, que tem tanto a ver com a história de tantos outros humanos como nós, não é mesmo?

Ps¹: “Desalis” significa algo como “Sem­asas” ~ou desalado~ em Latim.